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terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

CONFISSÕES [2]



Eu tinha alguém dentro de mim. Não era nada que pudesse ser explicado, mas era uma sensação estranha, que me acompanhava desde quando me sentia viva.
E eu me sentia viva há muito, muito tempo. Muito mais tempo do que aquele registrado nos documentos. Não havia muitos que aceitassem meu jeito. Sempre lia, bastante, procurando alguém que tivesse escrito que era como eu. Uma busca em que achei muitas explicações...
( explicações demais!)
... e nenhuma era completa. Havia vozes também...
(cuidado! Ela nos ouve!)
... mas nunca entendia direito o que elas queriam dizer. Porque eram muitas, e falavam todo o tempo. Por isso, não gostava dos lugares onde muitas pessoas pensavam e sentiam coisas diferentes, das multidões...
(fale mais alto. Me escute)
... porque as vozes da minha própria cabeça também falavam alto, e nesses momentos pensava que iria enlouquecer.
(preste atenção em tudo)
Nas festas, era comum me isolar. Bem no auge da bagunça, com todo mundo se divertindo, saía de mansinho...
(que bom! Você voltou!)
... e ficava tentando entender porque era assim, distante de tudo e de todos, como uma autista em seu mundinho particular.
(... medo? Vem, eu te conto uma história...)
Tentei ser normal, ou aquilo que eu achava que era normal. Anos a fio. Mas a sensação era a de estar representando em um teatro.
(você é um pouquinho de todos eles)
Não que fosse difícil. Eu entendia a todos, à minha volta, o que queriam, como eram, o que os fazia felizes. Eu só precisava querer, então entrava em sintonia, e se sentiam bem comigo.
Mas eu não me sentia bem, comigo.
Foi então que comecei a escrever.
No começo, não sabia bem o que queria. Acho que a vontade era divertir os outros, agradar, quem sabe ganhar dinheiro com isso. Era também uma forma de isolar a todos, entre canetas e papéis. Mas isso deixava gosto de sentimento de culpa. Se Deus...
(existe um deus? Porque deus significa culpa?)
... tinha dado a mim um dom para entender quem estava à minha volta, porque precisava me isolar?
(e se deus foi mulher? E se deus tiver família?)
Então, comecei a escrever a história das vozes. Não sei escrever direito, não gosto do jeito piegas com que, às vezes, distribuo idéias, e elas sempre parecem melhores quando estão só na minha imaginação.
(não destrua! Pode ser útil, um dia. Você vai querer rever...)
Realidade versus fantasia. A realidade parece irreal, a fantasia faz sentido. Foi em um daqueles finais de semana em que a gente procura coisas prá fazer, enquanto perguntamos porque fazer coisas que não se quer, que descobri o medo de ver, na realidade, aquilo que escrevia em fantasia...
(isso acontece. A energia está no ar)
... e por isso, não deixava a fantasia correr naturalmente. Eu a consertava, tal e qual fazia com a vida, sempre ajeitando as coisas pelo meio do caminho.
(... tanto trabalho a fazer...)
Se uma vez, uma vez só, conseguisse coragem para escrever o que realmente penso...
(haja coragem!)
... como quem faz uma regressão ao passado, afundando inconsciente na memória do tempo...
(quem tem medo do lobo mau?)
... poderia ver meus espelhos, as vozes que fazem parte de mim, as histórias de meus antepassados, entender e registrar parte das loucuras e das censuras de todos os tempos...
(será que não enlouqueceria?)
... então seria feliz.

(Confissões. Elaine Novaes Falco/1998)

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