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domingo, 7 de abril de 2013

[OS ESCRITOS SECRETOS], de Sebastian Barry

Ainda bem que escolhi ler [OS ESCRITOS SECRETOS], de Sebastian Barry, em uma semana com pouco trabalho... porque carreguei o livro comigo durante dois dias, catando cada segundo livre para folhear mais uma página que fosse, até dentro do ônibus e do elevador! Nesta semana, nem escrever no blog, eu escrevi... mas foi por uma boa causa, juro! (Leio em português, na tradução de Catharina Epprecht, edição de 2013 da Bertrand Brasil, RJ).

O que é mais envolvente?
A prosa de Barry?
Ou a história que carrega um segredo, desvendado aos poucos?

Toda prosa divide um tanto dos fatos, outro tanto dos sentimentos.
Mas [OS ESCRITOS SECRETOS] são fatos contados pelo olhar dos sentimentos. O resultado é simplesmente sensacional.

Acredito que simplicidade seja o segredo das mais belas páginas já escritas. Neste aspecto, o livro não foge à regra. Toda a ação do livro transcorre sobre dois relatos individuais, que se intercalam.

O primeiro é escrito às escondidas por Roseanne, memórias de uma mulher que beira os cem anos de idade, e internada há décadas em um hospital psiquiátrico.
O outro, é o relato do Dr. Willian Grene, médico psiquiatra responsável pelo local, que enfrenta um dilema: o prédio onde o hospício se situa há anos será demolido, e o novo e moderno local em construção para o mesmo fim ofertará um número menor de leitos. Por isso, o psiquiatra precisa decidir quais pacientes serão liberados e devolvidos à comunidade e suas famílias, e o número menor que permanecerá interno.

O primeiro impacto do livro é a ausência de documentos referente aos motivos que levaram a idosa senhora a ser internada num hospício, onde permanece há bem mais de meio século. Este mistério é o fio condutor do livro: dentre todos os internados, quais são efetivamente portadores de doenças mentais, e quais foram internados porque rejeitados pela sociedade? Roseanne tem mesmo alguma patologia mental, ou simplesmente foi rejeitada pelas pessoas que conheceu, assim como os ex-combatentes de guerra que, não conseguindo se readaptar à sociedade, acabaram instalados em uma ala masculina da mesma instituição?

Porém, a prosa de Barry filtra pela emoção.
E assim, o mistério do livro também aborda questionamentos extremamente atuais: a medicalização da psicologia, a autoridade penal dos diagnósticos psiquiátricos e, claro, a mal disfarçada intolerância que, como sociedade, mantemos em detrimento daqueles que são diferentes, ou fazem opções discordantes da maioria. Há dois anos atrás, li com atenção OS ANORMAIS (M. Foucault) para embasar minha tese de TCC. Então, tinha a perspectiva histórica deste famoso filósofo, o processo social que levou a psiquiatria a um patamar de ciência e autoridade penal para a definição e confinamento não só dos portadores de doenças mentais, mas principalmente daqueles indivíduos que, por suas idéias ou atitudes, questionem ou confrontem a moral ou costumes da comunidade em que estão inseridos. E, claro, não poderia jamais esquecer da biografia de CAMILLE CLAUDEL, porque nunca aceitei que os surrealistas franceses festejassem a loucura como um movimento de arte, enquanto perto dali minha escultora preferida amargou a condenação de uma internação compulsória, seu nome esquecido durante os trinta anos em que permaneceu internada no hospício, até sua morte.

A continuidade do relato nos faz conhecer um pouco da conturbada história da Irlanda.

Dizia minha mãe, que meu avô havia abandonado sua família irlandesa, antes de encontrar e se apaixonar por minha avó. Mas nunca fui atrás da história da família, não tenho certeza da informação, e sempre tive dificuldade em entender as peculiaridades deste país distante. Acho, inclusive, que esta foi a primeira vez que escolhi um livro porque o autor é "irlandês", narrando uma história que conta um pouco das discórdias de seu próprio país. Assim, também por este parâmetro, o livro foi interessante.

A personagem Roseanna é uma vítima, ao mesmo tempo, da intolerância religiosa e da misoginia. Sua história lembra, em alguns pontos, a biografia de DONA BEIJA DO ARAXÁ, a famosa e culta prostituta de Minas Gerais (que chegou a esta vida depois de ter sido sequestrada por um nobre quando só tinha treze anos, às custas do assassinato frio de seu pai), e que afirmava que a beleza é uma maldição.
Mas há mais um elemento nesta narrativa permeada de personagens históricos e passagens significativas da história recente da Irlanda: a profunda solidão da personagem.

E assim, mais uma vez, a história de suspense sobre uma mulher centenária mescla com um assunto extremamente atual: o isolamento da pessoa comum, os fortes vínculos de amizade jamais esquecidos, mas provenientes de episódios intensos em períodos curtos. Fala daquelas pessoas que são insubstituíveis em nossas vidas, mas que se afastaram ou morreram, e assim ficamos sós em meio de uma multidão de rostos parcialmente conhecidos, mais ou menos amigáveis, com quem temos pouco vínculo ou empatia. Uma solidão que se replica, hoje, nas redes sociais, nos meios profissionais, no consumo contínuo e fugaz.

Por fim, a história fala da memória.
De quem somos, transformados pela lembranças guardadas de uma vida.





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