Mas não posso afirmar isso, sobre o MALLEUS MALEFICARUM, chamado o livro dos inquisidores, escrito em 1484 por Heirich Kramer e James Sprenger (leio na versão traduzida para o português por Paulo Fróes, sob título O MARTELO DAS FEITICEIRAS, com uma excelente introdução em estudo histórico de Rose Maria Muraro e prefácio com análise psicológica de Carlos Byungton. Emprestei o primeiro volume que comprei e li, c-l-a-r-o que não devolveram!... Quando desisti de esperar, comprei o livro outra vez, agora tenho a 20ª reedição, de 2009, da mesma Editora Rosa dos Tempos.).
Este não é um livro "para ler".
Ao contrário: é um livro "para conhecer".
MALLEUS MALEFICARUM foi o livro que mudou a história da Santa Inquisição. Redirecionou a histórica da perseguição aos hereges (iniciada na trágica história dos cátaros, assassinados em Montségur, sul da França, entre 1209/1256 d.C), que atingia nobres e usurpava fortunas, para a caça às bruxas, atingindo sobretudo mulheres simples das pequenas aldeias, servindo interesses mesquinhos e brigas entre vizinhos.
O sucesso do MALLEUS na população da época, é normalmente creditado ao fato do livro conter várias gravuras, que ilustravam o que supostamente seriam o sabá das bruxas e formas de reconhecer as pessoas, sobretudo mulheres, que teriam pactuado com o demônio. Na Europa iletrada da época, as gravuras substituíram os inelegíveis textos em latim, e se tornaram imediatamente populares. A invenção dos tipos móveis da gráfica de Guttemberg também é apontada como um dos facilitadores à popularização da obra, por propiciar a facilidade de impressão e distribuição. E assim, MALLEUS acalentou a população em séculos de histeria supersticiosa.
O livro é dividido em três partes. A primeira, dedica-se a enaltecer o demônio com poderes divinos, agora chamado Lúcifer (o que traz a luz, o Portador da Luz), e ligar suas ações com a bruxaria. A questão principal da primeira parte do livro, é discutir teosoficamente sobre a existência do próprio demônio, da permissão divina para tal, e da existência das bruxas e de seus pactos demoníacos, até declarar herética qualquer dúvida sobre a existência de ambos. A segunda parte refere-se às formas de reconhecer uma bruxa, a partir de qualquer conduta que possa ser reputada diferente, ainda que remotamente: uma briga entre vizinhos, uma doença na família, até mesmo uma vaca produzindo menos leite. A terceira parte, ardilosamente preparada nos capítulos anteriores, refere-se à toda sorte de crueldades e aberrações do julgamento e sentenças que condenavam por bruxaria.
Confesso que nunca consegui ler o livro "inteiro".
Do texto propriamente dito, interessou a construção artificiosa que Sprenger faz, para transformar mitos greco-romanos e lendas populares, no imaginário da magia demoníaca. Entre estes, a imagem de Pã, deus greco-romano da natureza e dos lugares selvagens, transformado no "diabo" com chifres e pernas de bode popularizado a partir de então (pg 83 na edição citada).
Mas porque já conhecia o livro, foi interessante assistir (acho que ano passado), a um documentário recente (na TV a cabo, mas não gravei qual o nome do programa ou canal de emissão... desculpem), das pesquisas contemporâneas sobre a criação do MALLEUS, e da possibilidade de que este livro tenha sido uma das maiores fraudes perpetradas na história cristã medieval.
Isso porque a credibilidade do MALLEUS MALEFICARUM provém de uma Bula Papal, assinada pelo Papa Inocêncio VIII, dtada de 1484, e que inicia cada impressão dos volumes deste texto da bíblia dos inquisidores. A Bula Papal outorga aos inquisidores Henry Krammer e James Sprenger, professores de teologia da Ordem dos Monges Dominicanos, a proceder aos trabalhos da Santa Inquisição em várias aldeias, províncias e dioceses citadas.
Os pequisadores modernos observaram, entretanto, que não há uma ligação expressa entre a bula papal, e o livro propriamente dito.
De fato, a Bula Papal outorga poderes a um trabalho de campo, mas não cita nem se refere à redação de um livro e/ou texto teológico. Com uma pesquisa digna de detetives, debruçados sobre documentos antigos, os estudiosos concluíram pela possibilidade real de que o MALLEUS tenha sido escrito em data posterior à bula papal, pela ausência de referências ao tratado senão três ou quatro anos mais tarde do que a data apontada no documento, 1484. Observe-se, atentando à dificuldade na transmissão de informações do período, e caso sejam corretas as conclusões da pesquisa, que o livro teria sido concluído por volta de 1487/88, sendo que o próprio Papa Inocêncio VIII faleceu alguns anos depois, em 1492.
Na hipótese das conclusões desta pesquisa estar correta, talvez o Papa Inocêncio VIII jamais tenha efetivamente autorizado, ou validado, o livro que se tornaria a bíblia dos inquisidores e uma das páginas mais tenebrosas da igreja cristã.
E caso tais pesquisas estejam corretas em suas conclusões, a dimensão da crueldade humana atinge outro aspecto.
Neste contexto, MALLEUS MALEFICARUM terá sido uma pequena fraude de seus hediondos autores, que caiu no gosto popular talvez ainda mais do quê o comércio das relíquias e peregrinações, ou a compra de indulgências. Lembremos que a Santa Inquisição, nesta fase da caça às bruxas, tem uma reconhecida e declarada participação civil e popular ativa. A denúncia de bruxaria podia ser feita por qualquer pessoa, e ainda protegida pelo anonimato. E após o julgamento, em sendo a pessoa condenada por bruxaria, era o poder civil local quem fornecia as condições para a execução final, ou seja, quem promovia o espetáculo da morte pela fogueira, em praça pública, na presença de toda a populaçãodo local e redondezas.
Com isso, há duas formas de entender o MALLEUS MALEFICARUM, a caça às bruxas promovida pela Santa Inquisição, e seu impacto na sociedade cristã medieval.
Uma, é justificando a tragédia por um único bode espiatório, e culpabilizando o Papa Inocêncio VIII e a igreja romana, por toda a histeria coletiva, mortes cruéis e superstições que marcaram esta Idade das Trevas.
Mas há outra, aquela que nos faz pensar nos imperadores romanos acalmando seu povo com pão e circo (e o circo, eram lutas até a morte entre gladiadores, escravos oferecidos às feras e outros espetáculos de sangue), ou nos extermínios dos judeus e minorias nos campos de concentração da II Grande Guerra, e são estes apenas dois entre zilhões de exemplos possíveis. Ou seja, a outra interpretação, a que nos faz pensar se criminosos hediondos algum dia alçaram poder e promoveram tragédias, tão somente porque sua intolerância pessoal correspondeu e fez eco à intolerância da maioria da população a que se dirigiram, cada qual em sua época.
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