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quinta-feira, 28 de março de 2013

MANUAL DE SOBREVIVÊNCIA DO SÉCULO XXI

Faço um grande esforço para apreender novamente, agora sob as novas regras de um mundo computadorizado, quem me olha e porque me olha. SORRIA, VOCÊ ESTÁ SENDO FILMADO. Sorria para quem, e porquê?

Cresci em uma época onde a maioria das pessoas, nós pobres mortais, olhavam o mundo com os próprios olhos. Mais das vezes, sabia quando era vista, simplesmente porque também via quem olhava para mim. A televisão não modificava essa verdade, pois tinha a certeza que, nela, apenas eu era capaz de ver. E e a idéia de que alguém pudesse olhar para mim, ao reverso, através da televisão (ou de um celular, ou de um computador, ou qualquer outro aparelho doméstico e portátil, porque acoplados com um dispositivo de câmera e imagem), era idéia restrita à ficção de Orwell e seu tenebroso Big Brother que tudo vigia e tudo vê.

Mas os anos passaram. As lojas, comércios e até as ruas são lugares onde se escondem câmeras de segurança, que gravam minha imagem passando. Sou vista, sem saber quem me vê. Volto prá casa, e na televisão pipocam programas reality show, confinando ou seguindo voluntários e participantes dentro das casas, no espaço de sua intimidade, tornando a invasão de privacidade um espetáculo público. Hoje, qualquer celular possui câmeras de vídeo e foto, e não há controle ou aviso, de quem está filmando quem, ou para onde seguirão as imagens depois de produzidas.

Foi no ano passado, enquanto ainda concebia a idéia de voltar a escrever neste blog e escolhia com que novos conteúdos eu faria isso (a idéia original, que era vinculada ao TCC da faculdade de artes, teve tão pouca receptividade entre as pessoas que deveriam motivá-la, que eu mesma desmotivei), que me tornei consciente desta sensação de insegurança, consegui verbalizar e então prestar atenção nisso.

Quem me vê?
Porque me vê?
Que importância dá ao que vê?

A primeira coisa que fiz, foi prestar atenção ao fato de que, na rua, sou vista, mas não tenho importância. Câmeras de segurança, nos prédios e nas ruas, nos comércios e nos caixas automáticos, gravam minha imagem diuturnamente, mas sei que apagam tudo o que foi gravado em questão de poucos dias, a menos que exista algum crime ou acidente a ser periciado (o que, que eu saiba, ainda não aconteceu em nenhuma das imagens onde estive). Diferente, portanto, da minha casa, onde não há câmeras escondidas em lugares que desconheço, poucas pessoas me vêem, mas todas que o fazem me conhecem e se importam comigo. Apesar da sensação de constante e ininterrupta vigilância, o fato é que dentro da minha casa não há nenhum reality show acontecendo, e tenho minha privacidade razoavelmente preservada.

Sei que escrito assim, de forma tão fria e racional. a idéia parece bobagem e a distinção parece óbvia. Mas confesso que, na prática, fez toda a diferença, quantas vezes a imaginação havia distorcido a realidade? Será que só eu entrei para tomar um banho rotineiro, e uma associação de idéias qualquer trouxe a sensação de que algum ecochato poderia estar me espiando por uma câmera de segurança escondida nos furinhos do chuveiro, para garantir que "fizesse xixi no banho" e assim economizasse até a preciosa água que, de outra forma, seria usada na descarga? Será que só eu decido passar um dia inteiro de pijama, escrevendo meus textos aqui no computador, e de sobressalto imagino os estilistas do ESQUADRÃO DA MODA entrando porta adentro, determinados a fazer com que me vista de tal forma a agradar quem me critique, mesmo que não vá sair de dentro do sacrossanto recindo do meu estúdio doméstico? Ou que antes de sair no jardim, sete e meia da manhã de um dia de semana, para jogar na grama o pó de café usado tentando afastar as formigas que vejo infestando as calçadas da minha rua, olha em volta imaginando a improvável cena de ser abordada ainda de pijama por um repórter invasivo produzindo matéria sobre descarte ecológido do lixo doméstico?

Pois é... confesso que passo parte do meu tempo, selecionando pensamentos absurdos e colocando-os em seus devidos lugares. Separando as associações de idéias exdrúxulas como um pesadelo que nos acorda no meio da madrugada, através das perguntas simples que consigo verbalizar com tranquilidade: quem me vê? Porque me vê? Que importância dá ao que vê?

É assim que sigo em frente.
Sei que há um número de pessoas maior do que consigo imaginar, que me vê sem que eu saiba disso. E sei que não tenho qualquer importância, para nenhuma delas, sou apenas um número de estatística, mesmo que os políticos neguem o fato nos seus discursos de palanque. Sou aquela que passa, aquela que compra, aquela que saca dinheiro, aquela que espera o ônibus em meio a uma infinita sucessão de pessoas que passam, compram, sacam dinheiro e esperam o ônibus, continuamente, todos os dias. E estatística, todos sabemos, são aqueles números que só fazem sentido para quem tem que tomar decisões em políticas públicas e grupos extensos, mas não fazem sentido e se tornam absurdas, interpretadas individualmente. Estatística é aquela afirmativa de que as famílias modernas tem, em média, um filho e meio. Escuto, e dou risada, o que é "meio" filho? Ser um dado infinitesimal de uma estatística, é de pouca valia para mim. Tomo de suas conclusões, apenas o que me aproveita.

Porém, nesta matemática, pouca gente me vê.
E isso é uma constatação triste, porque também eu vejo menos do quê gostaria, as pessoas de quem gosto, ou amo. Não falo aqui do manter contato, dos bom dia & boa tarde do facebook, do telefonema eventual. Falo das conversas partilhadas olho no olho, dos lugares comuns onde todos se encontravam, que parecem cada vez mais distantes e impossíveis entre agendas apertadas com muito trabalho, a distância dos deslocamentos, e a violência crescente na noite e nos feriados em que a cidade descansa.

Sinto como se vivesse dentro de uma redoma de vidro, dentro de uma bolha que está em constante movimento à minha volta. Raramente sinto solidão, mas comumente estou sozinha. Não seria um sentimento ruim, não fosse o fato de significar uma perda (mais uma) de algo importante que agora faz parte do passado. Talvez esteja apenas envelhecendo. Ou não, já que não estou sozinha nesta constatação.

Mas isso tudo é apenas metade da verdade.
A outra metade, é quando me afasto de tudo, desligo a televisão e o rádio, e deixo o silêncio desenhar seus caminhos.
Preciso disso, desta solidão criativa, para pensar e produzir.

Durante décadas, estive cercada de pessoas muito amadas, todo o tempo. E nesta época, desejando o que não tinha como qualquer outra pessoa o faria, sonhava em ter tempo para mim, para produzir tudo o que minha imaginação ditasse. Na medida em que a maturidade foi chegando, trazendo o tempo de tranquilidade que tanto desejei, descobri que meus sonhos eram mais fáceis de realizar quando não eram mais do que imaginação.

Escrever as histórias, palavrinha por palavrinha, era trabalho mais lento do que imaginei que seria. Depois, vem a revisão, e quase que escrevo tudo de novo. Não tenho palavras para descrever a frustração de olhar os primeiros desenhos e modelagens que fiz, quão longe estava do resultado que queria obter. Achei que escreveria mais rápido, que desenharia melhor e veloz, que pintaria com mais precisão, que as peças de argila não desmoronariam tão fácil pelo peso do material ou da gravidade, tampouco rachariam na secagem. Tanto idealizei, e me descobri simples aprendiz!

Sinto que estou no meio do caminho.

Há um lado saudosista, do barulho e da balbúrdia de quando a cidade era menor, o tempo era mais elástico, as crianças eram crianças, os idosos ainda viviam, e havia sempre muita gente junta para fazer, em equipe, o que precisava ser feito. Mas há também um outro lado, ansioso por aprender e produzir, ávido por cada minuto deste tempo de isolamento, mas cheio de ansiedade sobre a minha real capacidade para produzir algo de qualidade, como gostaria. O saudosismo me traz segurança, porque fala de um tempo passado que pertence a mim, e a mais ninguém. O presente traz promessas, mas também insegurança, porque remete a um tempo futuro que ainda não me pertence, nem a mim, nem a ninguém.


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